Publicada em 21/9/2019
UM VIOLÃO EM MINHA VIDA OU SETE ANOS SEM NEWTON BAIANDEIRA
Por: Fernando Silva
Um violão acompanha-me há quase 30 anos. É o eterno habitante privilegiado do meu quarto de hóspedes.
O seu posicionamento estratégico no aposento só agora percebi: acha-se involuntariamente encostado numa cadeira, sob um gigantesco pôster de Carlos Drummond de Andrade. Na fotografia da parede, o poeta está apoiado numa janela de seu apartamento, no Rio de Janeiro. Ilustra a imagem um depoimento histórico para o “Jornal do Brasil”: “uma coisa que acho estranho é a má interpretação do meu poema. Acharam que eu humilhava minha terra, quando era justamente o contrário...”, lamentava o imortal itabirano.
Esse desabafo era uma alusão ao mal compreendido relacionamento de Drummond com a sua terra. Mas não sei se acho essa coisa estranho ou estranha. Passo horas a divagar sobre essa dúvida atroz, mas não concluo nada. Melhor seria se tentasse dedilhar alguma coisa nas cordas do instrumento musical. Que pena! Não conseguiria sequer abraçá-lo com competência. Confesso: sou um completo analfabeto na arte de Toquinho, Vinícius de Moraes, Dilermando Reis e outros virtuoses.
Esse violão permaneceria eternamente ali naquele canto, anônimo. Foi salvo desse ostracismo por uma intervenção providencial de Newton Baiandeira. O autor do “Trem que Leva Minas” se sensibilizou com a triste solidão desse ser mágico, que vive naquele pequeno cômodo da minha residência. Uma noite, o poeta chegou cá em casa e, num momento sublime, executou o maravilhoso “Sons de Carrilhões”. Um instante do mais puro encantamento.

Raramente alguém entra no aposento do meu violão. Só então percebi a tristeza do meu amigo de pinho. Logo ele, que pintou em minha vida meio que sem querer.
Esse relacionamento (eu e o violão) começou quando residia em Belo Horizonte, num apartamento da minúscula rua do Acre, nas proximidades da rodoviária.
Era uma tarde de domingo. Estava estirado no sofá da sala de visitas, depois de me encharcar de cervejas durante toda a manhã. Fazia um forte sol. Esperava o tempo passar para ver algum jogo do Cruzeiro no fim do dia. Nada de anormal. Repito esse ritual dominical ao longo da minha existência.
De repente, alguém tocou a campainha. Não dei importância, pois estava mais morto que vivo. Do outro lado da porta, o inoportuno insistiu irritantemente. E a campainha não ajudava em nada. Era antiga e tinha um som estridente.
Não me restou alternativa. Disparando impropérios me ergui com infinita má vontade.
Abri a porta e dei de cara com um sujeito no mínimo estranho. Estava muito mal vestido e andava desengonçado. Trazia um violão no ombro. Conversava com dificuldade, tropeçando nas palavras. Entendi tudo. Afinal, bêbados falam um mesmo idioma (o esperanto etílico).
E o estranho logo explicou o motivo da inesperada visita:
- Moço, eu preciso vender esse violão. A minha mãe vai fazer uma consulta amanhã e eu não tenho dinheiro para comprar remédios. Por favor, fique com o meu violão.
Respondi com irritação:
- Não sei tocar essa coisa, não tenho interesse em aprender e estou totalmente duro.
E o outro insistiu:
- Por favor, compre o meu violão. Fique com ele. Volto amanhã e recebo o dinheiro.
Peguei o instrumento, até mesmo para me livrar da inconveniente figura. No dia seguinte, o homem exótico retornou e recebeu o valor combinado. Uma quantia bem aquém do que valia a singela mercadoria, depois descobri isso. Nunca mais vi esse misterioso personagem. O violão, porém, jamais me abandonou, apesar de sua instigante solidão. Fica sempre comigo.
PS1: Newton Baiandeira morreu precocemente em 13 de setembro de 2012. O poeta, também cantor, escritor e compositor, não foi um talento nacional por um único motivo: o imenso apego à província impediu que o Brasil o conhecesse. Um “erro” que Carlos Drummond de Andrade não cometeu.
PS2: A fotografia de Newton Baiandeira- que ilustra o texto- eu roubatilhei do produtor cultural Cleber Camargo. E a expressão “roubatilhei”, eu roubatilhei da minha amiga Liliene Dante, grande jornalista itabirana.
Por: Fernando Silva
Um violão acompanha-me há quase 30 anos. É o eterno habitante privilegiado do meu quarto de hóspedes.
O seu posicionamento estratégico no aposento só agora percebi: acha-se involuntariamente encostado numa cadeira, sob um gigantesco pôster de Carlos Drummond de Andrade. Na fotografia da parede, o poeta está apoiado numa janela de seu apartamento, no Rio de Janeiro. Ilustra a imagem um depoimento histórico para o “Jornal do Brasil”: “uma coisa que acho estranho é a má interpretação do meu poema. Acharam que eu humilhava minha terra, quando era justamente o contrário...”, lamentava o imortal itabirano.
Esse desabafo era uma alusão ao mal compreendido relacionamento de Drummond com a sua terra. Mas não sei se acho essa coisa estranho ou estranha. Passo horas a divagar sobre essa dúvida atroz, mas não concluo nada. Melhor seria se tentasse dedilhar alguma coisa nas cordas do instrumento musical. Que pena! Não conseguiria sequer abraçá-lo com competência. Confesso: sou um completo analfabeto na arte de Toquinho, Vinícius de Moraes, Dilermando Reis e outros virtuoses.
Esse violão permaneceria eternamente ali naquele canto, anônimo. Foi salvo desse ostracismo por uma intervenção providencial de Newton Baiandeira. O autor do “Trem que Leva Minas” se sensibilizou com a triste solidão desse ser mágico, que vive naquele pequeno cômodo da minha residência. Uma noite, o poeta chegou cá em casa e, num momento sublime, executou o maravilhoso “Sons de Carrilhões”. Um instante do mais puro encantamento.

Raramente alguém entra no aposento do meu violão. Só então percebi a tristeza do meu amigo de pinho. Logo ele, que pintou em minha vida meio que sem querer.
Esse relacionamento (eu e o violão) começou quando residia em Belo Horizonte, num apartamento da minúscula rua do Acre, nas proximidades da rodoviária.
Era uma tarde de domingo. Estava estirado no sofá da sala de visitas, depois de me encharcar de cervejas durante toda a manhã. Fazia um forte sol. Esperava o tempo passar para ver algum jogo do Cruzeiro no fim do dia. Nada de anormal. Repito esse ritual dominical ao longo da minha existência.
De repente, alguém tocou a campainha. Não dei importância, pois estava mais morto que vivo. Do outro lado da porta, o inoportuno insistiu irritantemente. E a campainha não ajudava em nada. Era antiga e tinha um som estridente.
Não me restou alternativa. Disparando impropérios me ergui com infinita má vontade.
Abri a porta e dei de cara com um sujeito no mínimo estranho. Estava muito mal vestido e andava desengonçado. Trazia um violão no ombro. Conversava com dificuldade, tropeçando nas palavras. Entendi tudo. Afinal, bêbados falam um mesmo idioma (o esperanto etílico).
E o estranho logo explicou o motivo da inesperada visita:
- Moço, eu preciso vender esse violão. A minha mãe vai fazer uma consulta amanhã e eu não tenho dinheiro para comprar remédios. Por favor, fique com o meu violão.
Respondi com irritação:
- Não sei tocar essa coisa, não tenho interesse em aprender e estou totalmente duro.
E o outro insistiu:
- Por favor, compre o meu violão. Fique com ele. Volto amanhã e recebo o dinheiro.
Peguei o instrumento, até mesmo para me livrar da inconveniente figura. No dia seguinte, o homem exótico retornou e recebeu o valor combinado. Uma quantia bem aquém do que valia a singela mercadoria, depois descobri isso. Nunca mais vi esse misterioso personagem. O violão, porém, jamais me abandonou, apesar de sua instigante solidão. Fica sempre comigo.
PS1: Newton Baiandeira morreu precocemente em 13 de setembro de 2012. O poeta, também cantor, escritor e compositor, não foi um talento nacional por um único motivo: o imenso apego à província impediu que o Brasil o conhecesse. Um “erro” que Carlos Drummond de Andrade não cometeu.
PS2: A fotografia de Newton Baiandeira- que ilustra o texto- eu roubatilhei do produtor cultural Cleber Camargo. E a expressão “roubatilhei”, eu roubatilhei da minha amiga Liliene Dante, grande jornalista itabirana.